Rios de sangue, rios de lama
16/11/2015
Eles explodiram a cidade luz.
Distribuíram balas pelas ruas, pelos bares, pelos restaurantes, pelo show de rock. Trancafiaram centenas de pessoas e fizeram-nas assistir à morte de amigos e esperar pelas suas próprias, deitadas sobre poças de sangue. Eles disseminaram o cheiro da morte.
Derrubaram um avião russo. Não necessariamente nesta ordem. Mais de duzentas vidas foram ceifadas em meio segundo. O tempo de uma bomba explodir. O tempo de se perguntar o que está acontecendo e descobrir do jeito mais cruel possível. O tempo de uma pequena oração.
Dois homens explodiram seus próprios corpos em Beirute. Era uma quinta-feira comum para as quarenta e quatro pessoas que se foram com eles. Disseram que foi apenas o início.
Duas barragens se romperam em Minas Gerais, espalhando uma avalanche de lama, areia, óxido de ferro e medo por uma cidade inteira. Não foi um acidente. Não foi uma catástrofe imprevisível. E não foi emitido nenhum sinal de alerta para os mais de seiscentos moradores que tiveram suas casas devastadas.
Milhares de pessoas discutem sobre qual tragédia devem apoiar, criticando a posição um do outro, trocando acusações vazias e sem sentido. Ninguém oferece a mão a quem precisa.
Rios de sangue, rios de lama, rio doce, rio seco.
Há menos de um mês, um policial confundiu um macaco hidráulico com uma arma e matou dois mototaxistas. Todos os dias, traficantes e assaltantes tornam-se assassinos, simplesmente porque a vida de outra pessoa atrapalhou a sua. Mais tarde, são mortos também. Porque no Brasil não há pena de morte, mas "bandido bom é bandido morto".
Treze mulheres são mortas por dia, apenas por serem mulheres. A cada sete dias, um homossexual relata sofrer uma agressão. Semana passada, vi um carro fechar uma moto propositalmente, por ter levado uma buzinada. Ontem, um vizinho xingava a mãe de outro.
A gente esqueceu o que é o amor.
Essa coisa frágil e rara, que deve ser cultivada para que floresça. É muito mais fácil cultivar ódio. Não é necessária muita dedicação para que o ódio nasça, para que ele cresça, para que dê frutos. A raiva, o preconceito, a falta de respeito e o rancor preenchem o espaço de um coração com plenitude, o que faz com que ninguém queira lutar contra estes sentimentos ruins. Afinal, o que iríamos ganhar substituindo o ódio pelo perdão? Que vantagem teríamos em amar alguém que não é do nosso círculo familiar ou social, um completo estranho que não nos daria nada em troca do nosso amor fraterno? O que é mesmo o amor fraterno?
As pessoas costumam rir quando falo de amor. Porque falo muito de amor. Porque consideram ingenuidade pensar que o princípio de tudo deve ser o amor ao próximo e que o princípio de toda tragédia é a falta deste amor. Algumas até fingem concordar comigo, desde que essa regra só se aplique aos outros. Desde que elas não precisem amar a vizinha chata que atormenta, desde que possam continuar xingando uns aos outros no trânsito, desde que não precisem perdoar o ex-marido que a traiu ou o pivete que roubou seu celular. As pessoas não enxergam as outras como pessoas. Não sabem estender a mão, compreender o outro lado, ajudar quem não têm a obrigação de ajudar. Não ensinam isso às crianças. Não aprendem isso na internet. Não conhecem o significado de empatia e solidariedade.
Não será necessário nenhum grande meteoro ou dilúvio para acabar com a raça humana de uma vez. Ela mesma será a responsável por seu fim, pouco a pouco.